Quarto sinal do
Evangelho de João e paralelos em Mt, Mc e Lc: A partilha dos pães, uma pedagogia que liberta e emancipa. (Jo 6,1-15)
A
fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs que os
quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do
povo. É
óbvio que não devemos historicizar as narrativas de partilha de pães como se
tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta
a setenta anos depois. O quarto evangelho, por volta dos anos 90. Logo, são interpretações teológicas que
querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis
original de Jesus Cristo. Não podemos também restringir o sentido espiritual da
partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se
saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização dos
textos. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é
uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de
pães têm como finalidade inspirar solução radical para um problema real e
concreto: a fome de pão.
A
beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o correto é partilha de
pães e não multiplicação de pães -
está no processo seguido: uma série de passos articulados e entrelaçados que
constituem um processo libertador. O milagre – no caso de Mt, Mc e Lc – ou o
sinal – no caso de Jo - não está aqui ou ali, mas no processo todo. Aqui o
nosso foco de análise é o Evangelho de João, mas considerando que narrativas
semelhantes estão também em Mt, Mc e Lc, melhor
analisar a Partilha dos pães a partir dos quatro evangelhos e não apenas
a partir do quarto evangelho.
Eis, abaixo, uma série de dez características presentes nas
narrativas de partilha de pães que nos revelam uma Pedagogia que liberta e
emancipa:
Cidade, lugar de violência? O evangelho de Mateus mostra que o povo faminto
“vem das cidades (Mt,13).” As cidades, ao invés de serem locais de exercício da
cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência sobre os corpos
humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e continua criando -, nas ondas da
evolução, tudo “em seis dias e no sétimo
dia descansou (Gen 2,2 ).” Conta-se que alguém teria perguntado a Deus
porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Deus teria dito que já tinha
criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de toda a
biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador concluiu
que era melhor descansar.
Ir para o meio dos excluídos e injustiçados. “Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1),
entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos e
injustiçados. Jesus não fica no mundo dos incluídos, o mundo do status quo e da legalidade, mas
estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos
e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.
“Jesus subiu a montanha e sentou-se aí
com seus discípulos (Jo 6,3).” Jesus transitava da planície para a montanha
e vice-versa. Na montanha fazia a experiência da contemplação, encontrava com
Deus Pai, o mistério de amor que nos envolve, encontrava com seu eu mais
profundo e com todas as criaturas da biodiversidade. Assim, a experiência da
montanha, o animava a se lançar na planície para encontrar o povo nos porões da
humanidade, oprimido e injustiçado. “Sentou-se.” Mais do que a postura de
sentar, devemos ver aqui Jesus assumindo a postura de mestre, aquele que ensina
um ensinamento libertador com autoridade. “Com seus discípulos.” Podemos intuir
: “e com suas discípulas também.” Jesus não era um franco atirador, um agente solitário.
Jesus nasceu, cresceu e se formou no meio de um movimento popular religioso.
Aprendeu muito com Maria, sua mãe, com José, seu pai, com João Batista, com
determinado tipo de fariseus, com o povão, com a natureza. Quando deixa de ser
discípulo e passa a ser mestre, Jesus age e ensina quase sempre acompanhado
pelo seu movimento de discípulos e discípulas. Isso para nos ensinar que
problemas sociais, que são problemas de muita gente e não de apenas algumas
pessoas, devem ser encarados em ações comunitárias e coletivas. “A nossa força
está no grande número de pessoas que aderem à luta”, ensina-nos o Movimento dos
Sem Terra e o Movimento dos Sem Casa.
Nunca perder a capacidade de se comover e de se indignar. Profundamente
comovido, porque “os pobres estão como
ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes
da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam colocando fardos pesados nas costas do povo. Com olhar
altivo e penetrante, “Jesus vê uma grande
multidão de famintos que vem ao seu encontro (Jo 6,5).” Isso nos remete à
lembrança de que no Brasil há milhões de
pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má
alimentação.
Postura crítica. Jesus não sentiu medo dos pobres, encarou-os e procurou
superar a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram dois projetos para
resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi apresentado pelo discípulo
Filipe: “Onde vamos comprar pão para
alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam
lavar as mãos: “Despede as multidões para
que possam ir aos povoados comprar alimento.” (Mt 14,15). Desculpas
esfarrapadas não faltam. A de Filipe era: Nem 182,5 salários mínimos seriam
suficientes para saciar os famintos. Hoje se repete à exaustão: “Não temos orçamento suficiente. São muitas
as necessidades. O poder público não dá conta de responder positivamente a tudo. Os
cortes nas áreas sociais serão para impedir a inflação de subir mais etc.” Filipe
representa os que estão dentro do mercado e pensam a partir do mercado, o
capital. Filipe está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as
pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na
idolatria do mercado e do capital. A história brasileira está cheia de exemplos
de governantes dizendo: “Esperem o bolo
crescer para depois repartirmos. Esperem na fila da moradia que vocês terão a
casa própria. .” Mas a história demonstra que sem lutas coletivas o bolo
nunca é partilhado e se torna cada vez mais concentrado. O povo organizado tem
aprendido como somente na luta conquistam-se direitos como terra e teto.
Postura criativa. O segundo projeto é posto à baila por André, outro
discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um menino com cinco pães e dois peixes”
(Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos e discípulas a responsabilidade social,
ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar
os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra. Nada de desculpas
esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam as consciências. Jesus pulou de
alegria e, abraçando o projeto que vem de André (em grego, andros = humano), anima o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas características
fundamentais do processo protagonizado por Jesus para levar o povo da exclusão
à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus convida o povo para se sentar. Por
quê? Na sociedade escravocrata do império romano somente as pessoas livres e
cidadãs podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não podiam
perder tempo de trabalho. Deviam engolir rápido e retomar o serviço árduo. Um
terço da população era escrava e outro terço, semiescrava. Logo, quando Jesus
inspira o povo para se sentar, ele está, em outros termos, defendendo que os
escravos são seres humanos e, portanto, têm direitos e devem ser tratados como
cidadãos.
“Um menino ... (Jo 6,9).” O discípulo
André não apontou que a solução para o problema da fome poderia vir de um sumo
sacerdote, nem de um rei, nem de um saduceu, nem de um fariseu, mas apontou que
poderia vir de um menino, uma criança. Isso para nos ensinar que é a partir do
pequeno, do simples e dos humildes que surgem as verdadeiras soluções. Atuando
de forma coletiva e comunitária, os pobres são protagonistas e sujeitos de sua
libertação. É como dom Moacyr Grechi ensinou
no 12º Intereclesial das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), em Porto
Velho, em Rondônia: “Pessoas simples
fazendo coisas simples, multiplicando aos milhares, conseguem grandes
transformações.”
“Cinco pães e dois peixes ...(Jo 6,9).”
Não é a partir do muito e nem do forte que se supera os problemas mais graves
que afligem o povo, mas é a partir do pouco de cada um/a.
Organização é o segredo da pedagogia de Jesus. Jesus estimula a organização
dos famintos. “Sentem-se, em grupos de
cem, de cinquenta, ...” (Jo 6,10; Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros
cristãos e cristãs nos inspiram que o problema da fome e todos os outros
problemas sociais só serão resolvidos, de forma justa, quando o povo
marginalizado e injustiçado se organizar e partir para lutas coletivas.
Gratidão. “Jesus agradeceu a Deus (Jo 6,11).” A
dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam e
perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso. Vamos continuar
cantando com Manoelão - cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base
que já partilha vida em plenitude - cantos revolucionários, tal como: É madrugada, levanta povo! / A luz do dia vai nascer de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino do povo!
/ O povo agora é Senhor da história,
/ Somos rebentos desta nova era. / A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!
Não ser paternalista. Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos.
Jesus provoca a solidariedade conclamando para a organização dos injustiçados
como meio para se chegar à cidadania de e para todos. Dar pão a quem tem fome
sem se perguntar por que tantos passam fome é ser cúmplice do capital que rouba
o pão da boca da maioria.
Reaproveitar. “Recolham os pedaços
que sobraram, para não se desperdiçar nada (Jo 6,12)”, nos ensina Jesus no
final da narrativa da partilha de pães no quarto evangelho. Economia que evita
o desperdício. Atualmente quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo,
enquanto tantos passam fome. É hora de reduzir o consumo. Reaproveitar,
reciclar. Nada deve se perder, mas ser tudo transformado. Em uma casa ecológica
tudo é reaproveitado, inclusive as fezes são consideradas recursos, pois viram
adubo fértil e orgânico. Envolvidos pela crise ecológica, com aquecimento e
escurecimento global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar, reaproveitar,
recusar, recuperar e repensar.
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